sábado, 18 de setembro de 2010

Crítica: Ele Precisa Começar

 Por Jória Lima*


A tradicional disputa entre ficção e realidade se revela nesta peça como eixo dramatúrgico central. Em cena temos um ator-personagem que decide escrever um texto e começar pela descrição de si mesmo e do seu entorno, o quarto do hotel, os tipos de cafeteiras que tem na recepção, a camareira e seu uniforme, a correção gramatical automática do seu notebook, etc. Aos poucos ele se deixa invadir pela imaginação criativa de personagens, ações e situações inusitadas. Simultaneamente, temos em cena, o ator-narrador em diálogo direto com a platéia, praticando o “distanciamento”, técnica tão festejada em Bertold Brecht e herdeira de uma longa tradição teatral desde os gregos, passando pelos elisabetanos, que já se utilizavam desse “falar com o público” para comentar fatos ficcionais ou extra ficcionais.

No modo crítico moderno, o efeito revivido por Brecht e utilizado na dramaturgia contemporânea busca revelar os meios representacionais, a artificialidade das ações cenicamente postas e uma afirmação do “teatral” sobre o “natural”. A encenação assume assim, uma feição racional que provoca um modo crítico de observação, que tira o espectador de sua zona de conforto de mero fruidor passivo para um observador analítico, que questiona aquilo que desconhece ou não compreende bem, dando margem a diversas reflexões. Neste tipo de proposta de dramaturgia contemporânea essa provocação interessa mais ao artista do que simplesmente o juízo de valor do gostar ou não da peça. 


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A dramaturgia contemporânea questiona e confronta a mimesis aristotélica , quando entendida como mera imitação da realidade, porque pretende elevar ao estatuto de arte independente e autônoma seu universo ficcional com suas próprias leis e signos, no caso do universo teatral, a teatralidade. Pretende uma sobrevalência da “realidade ficcional” sobre a “ficção da realidade”. No espetáculo- Ele precisa começar- por meio da metalinguagem o autor fala sobre o processo de construção dramatúrgica, traçando o caminho reverso, de trás para adiante, revelando o processo criativo do dramaturgo, suas angústias e descobertas. O nascedouro de uma peça se dá bem diante dos olhos do público, com quem o autor-personagem pretende escrever uma história. Há uma interessante substituição do suporte do papel, da caneta, do notebook, para o próprio espaço cênico, onde tudo acontece, onde se pode manipular literalmente personagens e objetos, estar olho a olho com o personagem criado. Contudo, apesar da ousadia da proposta, da indiscutível competência e virtuosismo do intérprete, do contato direto com o público, a história continuou nas mãos unicamente do autor e do ator, não foi totalmente aberta e, neste aspecto, ouso dizer, que poderia ter avançado mais na proposta, colocando a platéia no lugar do autor concretamente, dando um salto no vazio e sem rede, que é de fato como o autor se sente no início de qualquer trabalho.



Inicialmente, o pacto tácito entre ator e platéia se estabeleceu com uma animada expectativa sobre o que viria, foi criada uma convenção partilhada entre ator e público de que se tratava de um processo de criação instântaneo e assim, a suspensão temporária da verossimilhança foi estabelecida.  Entretanto, no decorrer do espetáculo, o público não teve oportunidade de assumir efetivamente o espaço autoral para o qual foi convidado, representado inclusive por cadeiras postas dentro da caixa cênica, mesmo com a participação de alguém da platéia como a personagem Fátima, o controle do texto permaneceu com o autor, o que trai um pouco as expectativas do pacto inicial. A quebra desse acordo tácito e a grande quantidade de textos e imagens fragmentadas provocam em alguns momentos um desligamento da cena para em seguida retomar-se o fio da meada, recuperando junto com o personagem-autor as iscas deixadas por ele no texto, voltando-se ao ponto onde parou.

O espetáculo consegue criar um código inusitado e interessante com a platéia que assiste a uma peça que aparentemente não está pronta, mas que em verdade está, e de modo bem conciso ou amarrado, como se costuma dizer. Uma trama dramatúrgica onde preponderou o cerebral sobre o sensorial, sem a sensação de vertigem antes da queda, ausência de ação direta sobre o sistema nervoso. A cerebralidade e o virtuosismo foram as características preponderantes do espetáculo. Traçando um paralelo com a música, que para Deleuze, atravessa profundamente nossos corpos e nos põe uma orelha no ventre, nos pulmões etc, comona pintura, o olho é o órgão que assume o comando das sensações, na peça em questão, o órgão polivalente foi o cérebro e suas capacidades mnemônicas e associativas, levado insistentemente a tecer o fio da história fragmentada, ocupando-se em juntar os pedaços e tratar de dar-lhes algum sentido, o que é reconfortante para os menos acostumados com a linguagem contemporânea, ou apenas deixando-se invadir por imagens, sons e pensamentos desconexos para os adeptos das experimentações livres de conceitos. Portanto, o julgo gostei ou não gostei dependerá, como sempre, da própria vivência do espectador, do filtro que cada indivíduo representa, do critério de subjetividade, não sendo este o julgamento que mais importa em eventos dessa magnitude e representatividade. Vale a pena conferir os diversificados modos de representações artísticas, de variadas partes do país e suas formas de ver o mundo, este imenso palco giratório.

*Jória Lima é atriz, diretora, dramaturga, crítica teatral e especialista em arte contemporânea.

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